terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Macunaíma, de Mário de Andrade X Makunaíma, de Theodor Koch-Grünberg


Mário de Andrade sempre admitiu que a maior inspiração para Macunaíma, publicado em 1928, foi o mito indígena Makunaíma, com o qual o romancista teve contato por meio do segundo tomo da obra do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg ‘Do Roraima ao Orinoco’, Mitos e lendas dos índios Taulipáng e Arekuna, publicado em alemão em 1924.

Este texto pretende tensionar a construção do personagem Macunaíma, por Mário de Andrade, com o relato de Koch-Grünberg sobre o mito indígena. Não é minha intenção comparar o romance ficcional com a visão atual dos povos indígenas de Roraima sobre Makunaima, que também é compartilhado por outros povos indígenas da região do Monte Roraima (Venezuela e Guiana).
Vamos lá: entendo que, em Macunaíma, Mário de Andrade captou bem a moralidade de Makunaíma, que difere da moralidade cristã ocidental. E aí me parece estar a grande sacada do livro. Macunaíma é o herói sem nenhum caráter, o que não significa que é mau caráter. Portanto, não é vilão. Trata-se de um anti-herói, com seus desvios morais comuns a um ser um humano, em nada parecido com os heróis nobres, altruístas e integralmente virtuosos que a narrativa ocidental perpetuou.

Makunaíma engana a família para ter relações sexuais com a cunhada, passagem também encontrada no livro de Mário de Andrade. Além disso, em Koch-Grünberg, se lê um trecho em que Makunaíma trolla o irmão, dando uma fruta para este comer, após aquele ter passado o fruto no próprio pênis. Uma clássica traquinagem, molecagem, zoeira...

Em contraposição a isso, aponto dois aspectos que me desagradam no Macaunaíma de Mário de Andrade. Primeiro: a hipersexualização do personagem. Segundo: o recorrente ‘ai, que preguiça!’.

Bem, como se pôde ver acima, Makunaíma, em Koch-Grünberg, tem, sim, uma moral sexual, digamos, mais frouxa, se comparada à moral ocidental. No relato do etnólogo alemão, assim como em Mário de Andrade, Macunaíma/Makunaíma não se arrepende ou se sente culpado por cobiçar (e acasalar com) a mulher do próximo. No caso, seu irmão.

Há também outro trecho em Do Roraima ao Orinoco em que Makunaíma e os irmãos são rejeitados por mulher com quem queriam ter relações sexuais e, em razão disso, a castigam, bem como punem o escolhido da moça.

Das 12 histórias de Makunaíma no livro de Koch-Grünberg, essas são as duas únicas que fazem referência ao desejo ou à pratica sexual daquele.

Entretanto, creio que em Mário de Andrade, a libido de Macunaíma foi hiperdimensionada, deixando a impressão de que o personagem a todo tempo pensa e faz ou tenta fazer sexo com toda ou quase toda mulher com quem encontra.

Em contraponto, em Koch-Grünberg, há histórias sem conotação sexual alguma em que Makunaíma interage com mulheres. Em ‘Feitos de Makunaíma’, em Do Roraima ao Orinoco, por exemplo, Makunaíma, transforma homens e mulheres em pedras, sem qualquer referência à pratica sexual.

Outro aspecto em Macunaíma, de Mário de Andrade, o que mais me incomodou, foi a frase ‘ai, que preguiça’, repetida 15 vezes pelo protagonista ao longo do romance. Depois de mais de seis anos, sem falar, o primeiro dito de Macunaíma é: “ai, que preguiça”. Macunaíma tem preguiça de falar, trabalhar e, paradoxalmente, até de “brincar”, ou seja, fazer sexo! Em Koch-Grünberg, não se encontra tal interjeição. Trata-se de criação de Mário de Andrade.

Não creio que este tenha sido o propósito de Mário de Andrade, mas esse aspecto inevitavelmente reforça o estereótipo do índio como preguiçoso por natureza. Entretanto, nas narrativas de Koch-Grünberg e do próprio Mário de Andrade, é possível ver Makunaíma/Macunaíma cortar árvores, pescar, construir casa, caçar e fazer tantas coisas que não condizem com uma pessoa preguiçosa.

Acho que é isso!

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